O que há em comum entre as bonecas de barro do Vale do Jequitinhonha, no norte de Minhas Gerais, as rendas de bilro de Florianópolis, capital de Santa Catarina, e a cerâmica de Cotia, no sudoeste de São Paulo? Todos estes são exemplos de saberes e fazeres manuais transmitidos de geração em geração pelos quatro cantos do Brasil. São diferentes técnicas, materiais, cores, texturas e aplicações a compor uma teia que forma o profícuo artesanato brasileiro. Expressões que prevaleceram por muitos anos como suvenires – recordações de viagem embaladas por turistas –, mas que, principalmente nas últimas duas décadas, ganharam um novo olhar, significado e importância.
Pesquisadora e curadora de manualidades que percorrem o país de norte a sul, Adélia Borges reafirma em palestras, livros e instituições: “A única coisa primitiva sobre nosso artesanato é o nosso conhecimento a respeito dele”. Ex-diretora do Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, autora e coautora de mais de 15 livros, entre eles Design + Artesanato: o Caminho Brasileiro (Terceiro Nome, 2011), Adélia não só tem um profundo conhecimento na área, como ainda se emociona e se surpreende com a riqueza de manifestações culturais manuais nos rincões por onde viaja pelo Brasil. Nesta entrevista, a especialista nos explica o que está por trás do conceito de artesanato, qual o posicionamento das expressões manuais na contemporaneidade e os desafios do porvir.
Como definir o que é artesanato?
Resolvi adotar a definição da Unesco. Artesanato é tudo que se faz com as mãos e com predomínio de processos manuais. A elaboração de objetos em que predominem as técnicas manuais, mas na qual também pode haver a utilização de tecnologias, de equipamentos. O artesanato tem uma força muito grande inclusive na economia dos países em desenvolvimento. Há estudos que mostram essa força na economia. Países onde há predomínio do artesanato nas camadas mais pobres da população. O que não acontece em diversos países do hemisfério norte, onde há um retorno expressivo do artesanato, feito por mestres, doutores, gente escolarizada, onde há muitos cursos de faculdade de design, de joalheria, design têxtil etc. Tanto que, na Europa, o artesanato se conhece muito como “movimento maker”, de fazer com as próprias mãos, que implica, em geral, o uso de técnicas artesanais muitas vezes conjugadas com digitais. Nos Estados Unidos dá-se o nome de Do It Yourself (DIY).
Enquanto estrangeiros, como a arquiteta italiana Lina Bo Bardi, sempre foram fascinados pelo artesanato brasileiro, por que no país ainda há certo desmerecimento?
A tradição escravocrata que o Brasil tem é muito forte. É “ruim” sujar as mãos e fazer algo com elas. Se tenho instrução suficiente, mando alguém fazer e não faço. É uma tradição escravocrata e que diminui quem faz, criando uma dicotomia. Se for ver a definição de artesanato nos dicionários brasileiros, entre os significados consta: coisa rústica feita sem atenção, sem técnica. Uma visão absolutamente preconceituosa. Quando você compara essa definição com a de um dicionário britânico, é totalmente diferente. Lá entende-se por ofício, por aquilo que é feito à mão, feito com maestria por mestres da tecelagem, da cestaria etc. Então, imersos nessa realidade, precisamos de certa distância para ver o artesanato com novos olhos. Foi o que a Lina Bo Bardi fez, assim como outros. Outras iniciativas, algumas das quais faço parte, tentam mostrar o artesanato brasileiro de forma que as pessoas percebam a enorme riqueza que ele tem. Há também muitos artistas contemporâneos fazendo uso de técnicas artesanais. Como Ernesto Neto [na exposição Sopro, em cartaz na Pinacoteca], um artista que faz esculturas têxteis, muitas das quais realizadas em parceria com comunidades. Por exemplo, ele trabalhou anos com a Cooperativa de Trabalhadores da Rocinha, no Rio de Janeiro.
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